31 de agosto de 2011

A encenação jurisdicional acabou com o Direito do Consumidor?




Luiz Roberto Nuñes Padilla

Professor da Faculdade de Direito da UFRGS

Sumário: Um subsistema de Direito do Consumidor foi criado há duas décadas. Contudo, o cidadão está desprotegido e sofre os efeitos do poder econômico, da manipulação, e das práticas abusivas das corporações. Estas, interessadas em inviabilizar a efetividade dos novos direitos, criaram uma espécie de décifit de atenção coletiva, através da disseminação de falsas crenças, e da inversão de valores. Acreditando ser mais bonito mostrar estatísticas e rapidez, os operadores jurisdicionais implantaram uma acultura de improcedência. Conjugada a indenizações pífias (para não terem que examinar o caso concreto) e honorários aviltantes (acreditando que isso desestimulará o ajuizamento), propiciam que, no Brasil, às empresas alcancem lucros fabulosos.

Abstract: A subsystem of Consumer Law was established two decades ago. However, the public is unprotected and suffer the effects of economic power, manipulation, and abusive practices of corporations. They are interested in cripple the effectiveness of new rights, creating a kind of collective décifit care through the dissemination of false beliefs, and the reversal of values​​. Believing that statistics show most beautiful and fast, operators have implemented a jurisdictional dismissal of acculturating. Coupled with the pathetic compensation (not having to examine the case) and degrading fees (believing that this will discourage the filing), provide that, in Brazil, companies achieve huge profits.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth registraram a enorme importância da efetivação do acesso à justiça:“A expressão acesso à justiça é reconhecida de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico (...). Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos: segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. (...). Sem dúvida, uma premissa básica é a de que a justiça social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo.” CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. Pág. 8, grifamos.  Embora a garantia do acesso à justiça esteja prevista nas normas “...persistem problemas na aplicabilidade dessas regras, além de enormes desafios para que se supere o risco de que os dispositivos constitucionais vinculados ao acesso à justiça se tornem letra morta.” (MEISTER, Wilhelm. Acesso à Justiça e Cidadania. São Paulo: Fundação  Konrad Adenauer, 2000. p.7, grifamos).-O Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei 8.078/90, concretizou o surgimento de um microssistema jurídico no Brasil, regulamentando as relações de consumo, com normas de natureza constitucional, civil, penal, processual civil e administrativo: Instituiu a “Política Nacional das Relações de Consumo”; estabeleceu mecanismos para a execução dessas referidas políticas, buscando a igualdade entre os desiguais, com a criação de diversas normas para a proteção do consumidor contra o poder econômico das corporações.Entretanto, passados vinte anos,  as regras do direito do consumidor não produziram o efeito desejado. Todos os dias, e os consumidores sofrem lesões. Embora exista a atuação dos órgãos que compõem o “Sistema Nacional de Proteção e Defesa do Consumidor”, estes resolvem uma parcela ínfima dos casos, e a busca de tutela jurisdicional é infrutífera:O Judiciário está impregnado por uma espécie de décifit de atenção coletiva: A análise dos casos, trabalho o qual demandaria horas, é resumida em parcos minutos em busca de um motivo para arquivar o processo. Não raro, são inventados pretextos, transformando o processo em uma encenação jurisdicional dissociada da concretização dos direitos.Tudo isto acontece em nome da maior mentira do Século XXI: “Justiça veloz é mais importante do que ponderar e decidir com segurança”  - mentira adocicada disseminada pelos sociopatobistas das corporações, criando uma acultura de superficialidade egocêntrica na qual a pseudo-reflexão compromete a paz social.A efetiva construção da cidadania em nosso país, no que se relaciona aos direitos do consumidor, com adequada satisfação da comunidade, permitindo que as relações de consumo sejam estabelecidas em igualdade entre as partes e sempre que ocorrer lesão aos direitos dos consumidores, acontecer sua efetivação mediante a tutela jurisdicional. Todos são concordes que o acesso à justiça pode ser "encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos" (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. editora Max Limonad, 1997). Citando Cappelletti, lamenta que "paradoxalmente, nossas estruturas de ensino jurídico, práticas judiciais, hábitos profissionais, pesquisa e teorias jurídicas, prestação de serviços legais, etc., não têm dado o devido valor ao tema acesso à justiça”. O "acesso à justiça" tem sido confundido com o acesso aos tribunais. Entretanto, é muito mais! O acesso à Justiça é um direito fundamental, expresso no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,  sendo que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".Quando a Constituição normatiza que a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito, visa garantir, precisamente, que as decisões judiciais tenham eficácia em benefício dos jurisdicionados, de todos os jurisdicionados,  ricos ou pobres, indiscriminadamente:"Formalmente, a igualdade perante a Justiça está assegurada pela Constituição, desde a garantia de acessibilidade a ela (art. 5º, XXXV). Mas realmente essa igualdade não existe, "pois está bem claro hoje, que tratar "como igual" a sujeitos que econômica e socialmente estão em desvantagem, não é outra coisa senão uma ulterior forma de desigualdade e de injustiça (Cf. Cappelletti, Proceso, Ideologia e Sociedad, p. 67). Os pobres têm acesso muito precário à Justiça. Carecem de recursos para contratar bons advogados. O patrocínio gratuito se revelou de alarmante deficiência. A Constituição tomou, a esse propósito, providência que pode concorrer para a eficácia do dispositivo, segundo o qual o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art.5º, LXXIV). Referimo-nos à institucionalização das Defensorias Públicas, a quem incumbirá a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV (art. 134).” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1998, grifamos).Não é que revela a prática. Os pratos da balança não tem o mesmo peso: O poder econômico vem sendo beneficiado.Há um paradoxo entre as regras do direito do consumidor que o protegem, e o acesso à justiça onde a prática é contrária. O vício de buscar motivos para arquivar resulta que, na maioria das demandas, vencem as prestadoras. E mesmo naquelas onde, formalmente, a demanda é procedente, vence a corporação, porque as indenizações são pífias e os honorários aviltantes:“ ...o fenômeno acesso à justiça deve ser compreendido como a possibilidade material do ser humano conviver em uma sociedade onde o direito é realizado de forma concreta, seja em decorrência da manifestação soberana da atuação judiciária do organismo estatal, seja, também, como reflexo da atuação das grandes políticas públicas a serem engendradas pela respectiva atuação executiva, não olvidando-se, é claro, o escorreito a ser imprimido pela atuação legiferante. Todo isso, vale dizer, é de suma importância para a efetivação de uma realidade tão mais democrática  quanto justa, onde se possa ter a irrefragável certeza de uma atuação garantista que prestigie a vida, a dignidade e o respeito incorruptível aos direitos fundamentais do homem.” (RAMOS, Glauco Gumerato. Acesso à Justiça e Cidadania. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000. p.38-9, grifamos).Qualquer dúvida a respeito de que as normas que protegem o consumidor não são efetivamente aplicadas pelo Poder Judiciário, cuja esmagadora maioria de decisões favorece as prestadoras, esvai-se na realidade, incontestável, de comparar às parcas normas tutelares do Direito do Trabalho, cuja prática é eficaz na defesa dos interesses do trabalhador. Compare à negativa, na prática dos tribunais, dos anseios dos consumidores e o desrespeito aos direitos assegurados no Código de Defesa do Consumidor. Isto deformou o mercado. O lucro é motivo para o desrespeito aos direitos.Apesar de ser assegurado constitucionalmente, constituindo-se, sem dúvida, em um direito fundamental de todo e qualquer cidadão, o direito do consumidor não tem sido efetivamente aplicado no Brasil por falha no acesso à justiça que não produz “resultados... individual e socialmente justos” CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. Pág. 8, grifamos.  .A efetividade da justiça é a única forma de efetivar todos os direitos humanos e fundamentais:“Se não houver jurisdição constitucional eficiente e mesmo... todos os Direitos Humanos e Fundamentais tornar-se-ão vulneráveis e, enormemente, dependentes das eventuais condições das sociedades, dos governos e dos governantes.” (LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 176)Concretizar a cidadania é uma necessidade:“É na rua, é fora da sala de aula que é possível ver como o direito-instituído ou se efetiva ou é sonegado. Nas instituições se apresentam as possibilidades de releitura do direito...  É no cotidiano das pessoas e das instituições que os fatos acontecem, onde se luta pelos bens da vida, onde se operam as mudanças sociais.” (SOUZA, João Paulo de. O ensino jurídico, a sala de aula e a rua. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei (org.). Ensino Jurídico para quem?. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000. p. 107, grifamos) A Faculdade de Direito é responsável pela efetivação da cidadania porque se trata de uma invenção social que exige um saber político baseando na prática jurídica, com reflexão, e constante releitura de seus efeitos sobre a sociedade (FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis. FREIRE, Ana Maria Araújo (org.) São Paulo: UNESP, 2003, p. 152), atentos ao conteúdo que deve existir nas normas:“O homem ... como criatura sensível, acha-se sujeito a mil paixões... Deus chamou-o a si pelas leis da religião; poderia a todo instante exceder-se a si próprio; os filósofos advertiram-no mediante leis da moral; feito para viver na sociedade de seus semelhantes, ele aí poderia esquecer-se destes; os legisladores fizeram-no voltar aos seus deveres, por intermédio das leis políticas e civis. As leis devem ser de tal forma apropriadas ao povo para o qual hajam sido feitas, que, só mesmo por mera casualidade as de uma nação podem convir a outra nação. É preciso que elas se relacionem à natureza e ao princípio do governo que estiver estabelecido, ou que se deseje estabelecer, que elas formem esse governo, como acontece com as leis políticas, ou, conforme se dá com as leis civis, elas o mantenham. Devem ser relativas ao físico do país, ao clima glacial, tórrido ou temperado; à qualidade do solo, à sua situação, à sua extensão, ao gênero de vida de seus povos, lavradores, caçadores ou pastores; devem relacionar-se também ao grau de liberdade que sua constituição pode tolerar; à religião de seus habitantes, às suas inclinações, a suas riquezas, a seu número, a seus costumes, a seu comércio, às suas maneiras. Enfim, elas relacionam-se umas com as outras; relacionam-se também com sua própria origem, com o objetivo do legislador, com a ordem das coisas sobre as quais se acham estabelecidas. É, pois, sob todos esses pontos de vista que se torna necessário considerá-las (Montesquieu, “O Espírito das Leis”).A maioria dos processos, especialmente nas relações de consumo, finaliza sem que a lesão seja examinada e, muito menos, corrigida, incentivando a cupidez das corporações.Urge instrumentalizar a Justiça com um novo paradigma. A solução de continuidade para tal encenação jurisdicional está apontada em:


Referências bibliográficas:

ALENCAR, Chico. Direitos mais Humanos. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.ALMEIDA, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania: Do Direito aos Direitos Humanos. São Paulo: Acadêmica, 1993. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo Constitucional. São Paulo: Forense, 1984. 408 p.BOBBIO, Norberto. A Era do Direito, Editora Campos. 1992. p. 24/25BONATTO, Cláudio; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões Controvertidas no Direito do Consumidor: Principiologia, conceitos, contratos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. CADERNOS Adenauer. Acesso à Justiça e Cidadania. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000.CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia.editora Max Limonad, 1997.CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Livraria Almedina, 1995.CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.FELIX, Loussia P. Musse. Avaliação de cursos jurídicos: trajetórias e bases conceituais. In: OAB, Ordem dos Advogados do Brasil. OAB Ensino Jurídico: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1997.FILOMENO. José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1999. FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas técnicas para o trabalho científico. Explicitação de Normas da ABNT. 12ª ed. Porto Alegre: s.n., 2003. GAMA, Hélio Zachetto. Curso de Direito do Consumidor. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 GRINOVER, Ada Pellegrini. et al. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. PIOVESAN, Flávia C. O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Redefinição da Cidadania no Brasil – Justiça e Democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, Vol. 02/111, 1996.SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1998. 863 p.SOUZA, João Paulo de. O ensino jurídico, a sala de aula e a rua. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei (org.). Ensino Jurídico para quem?. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000. VENTURA, Deisy. Ensinar Direito. Barueri, SP: Manole, 2004.

Um comentário:

  1. Veja mais sobre esse fenômeno em: http://padilla-luiz.blogspot.com.br/2013/07/acultura-superficialidade-encenacao.html Hoje, a maioria dos processos finaliza sem o exame da lesão. Falsas crenças inverteram os valores: a maior mentira do Século XXI -> “Justiça veloz é mais importante do que segurança” - criou uma acultura de superficialidade, tornando "normal" procurar pretextos para adiar o exame ou indeferir as medidas, evitando o exame do caso e a fundamentação! Virou praxe enrolar, ficar pedindo documentos para adiar exame de liminares e "julgar" improcedente em minutos, sem sequer examinar as provas, arquivando os casos cuja análise demandaria horas!

    Podemos reduzir o volume forense sem "terceirizar" as decisões? Sim! http://www.padilla.adv.br/processo/morosidade/

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Já chegamos ao fundo do poço?

        A crise moral, política e financeira que se abateu sobre o nosso país não nos dá a certeza de que já chegamos ao fundo do poço....