A internet nos permite o acesso a todo tipo de informação, bem como encontrar belos textos produzidos.
Trago a vocês,
caros leitores, um que encontramos hoje e fala das palavras.
Desfrute a leitura. Muito bom.
Criadas pelos
humanos, as palavras são suscetíveis ao tempo, como os humanos. Algumas mudam
de significado, outras vão desbotando aos poucos, e há as que morrem na
inanição do silêncio. Ninguém mais chama o libertino de bilontra, a amante de
traviata ou o inocente de cândido. Depois de soar na boca do povo e iluminar a
escrita, bilontra, traviata e cândido foram sepultadas nos dicionários junto às
que lá descansavam em paz. Em seus lugares brotam novas, frescas e saltitantes,
com significado igual – ou quase. A língua é a mais genuína criação coletiva,
feita da contribuição anônima. O agito das palavras traduz as mudanças do mundo
– na ciência e tecnologia, na economia e política, nas leis e religiões, no
comércio e publicidade, no esporte e comunicação, nos costumes e valores.
A palavra escalpo
anda sumida porque não se arranca mais o couro cabeludo do inimigo. Não se mata
na cruz nem se guerreia em buraco – crucificar e trincheira são metáforas. O
Hino Nacional – impávido colosso, lábaro estrelado, clava forte – é um jazigo
verbal. Sem o chapéu, descobrir-se é saber de si. Formidável: quem ainda diz?
Semideus e semidivino agonizam por falta de fé. O reitor é magnífico?
Reveladoras são
as palavras que, condenadas, estão na fase de desaparecimento. Perderam
primazia e brilho, mas ainda são usadas. Escapam empoeiradas da boca da
professora, embaçadas no verso do poeta, combalidas na memória do idoso, mortas
no discurso do político. Observá-las em plena agonia é ouvir a sociedade.
Faz tempo não
ouço a palavra cavalheirismo. Parece que a igualdade de direitos das mulheres
botou fora o bebê, a água do banho e a bacia. Lá se foram também delicadeza e
cordialidade: louvadas no passado, antes de sumir viraram sinônimo de perda de
tempo. Pessoa cordial passou a ser chata, cheia de frescura, pé-no-saco,
puxa-saco. Cortesia não morreu, mas mudou: agora quer dizer brinde, boca-livre,
promoção! Crimes têm cúmplices, mas é rara a cumplicidade entre casais.
Leio jornais,
revistas, livros, peças e roteiros contemporâneos de lápis na mão. Há anos não
grifo a palavra honra. Nem os crimes passionais se explicam mais como defesa da
honra. Quando encontro as palavras perdão e respeito, referem-se a autoridades.
Já dever e sacrifício referem-se a voto e reajustes salariais. Encontro mais a
desonesto do que a honesto. Não leio ou ouço, em lugar algum, a palavra
compaixão: essa foi para o céu! Ética e educação, leio e ouço bastante. Mas
surraram os sentidos até esvaziá-los, ficaram ocas, só sons e letras. Os novos
sentidos são da conveniência e interesse pessoal de quem escreve ou fala. Os
significados que lhes deram Aristóteles e Rousseau dormem na paz do dicionário.
Se as palavras morrem ou mudam de sentido, os gestos, intenções e atitudes que
designam também morrem ou mudam de sentido. Cabe indagar: que sociedade é essa
que sepulta o cavalheirismo, a delicadeza, a cordialidade e a compaixão? Que
gente é essa que enterra a honra? Que país é esse que esvazia valores como
educação e ética e faz da cortesia um gesto interesseiro? Que confere respeito
e perdão aos poderosos e impõe aos destituídos o dever e o sacrifício?
Criadas pelos
homens, palavras são do humano. Intriga sejam justamente as que dizem o mais
humano do humano a perderem o sentido ou morrerem. Ou será que estamos perdendo
o prazer da convivência? Ah, palavras, palavras, palavras...
Fonte:
ARAUJO, Alcione. Palavras, palavras, palavras. Estado de Minas, Belo Horizonte, 05 jul. 2010.Caderno Cultura, p. 8.
ARAUJO, Alcione. Palavras, palavras, palavras. Estado de Minas, Belo Horizonte, 05 jul. 2010.Caderno Cultura, p. 8.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Agradecemos seu comentário. Críticas serão sempre aceitas, desde que observado os padrões da ética e o correto uso da nossa língua portuguesa.